As mulheres querem, acima de tudo, ser ouvidas. Muitos avanços, mas a verdade é que não é fácil para ninguém. Muitas das conquistas femininas, como entrar no mercado de trabalho, se somaram a tarefas centenárias e tradicionalmente femininas, como cuidar dos filhos. A internet trouxe um elemento a mais nessa jornada de Mulher Maravilha. Nesta edição, o Papo de Futuro traz uma convidada muito especial para discutir o burnout das mulheres no que elas têm de mais importante, a maternidade. É um pedido de socorro ao mesmo tempo de um reconhecimento de que, muitas vezes, a gente só precisa descansar.
Em primeiro lugar, parabéns às mulheres. Por alguns anos, eu achei que celebrar o Dia da Mulher era machismo às avessas! Ou seja, uma forma de discriminar os homens. Mas essa relação do masculino e do feminino não é excludente, mas sim complementar. Ou você conhece algum homem que não tenha uma forte relação com uma figura feminina? Portanto, pensar nas mulheres é também cuidar dos homens, a começar pelos nossos filhos. E esse programa está para lá de especial, porque nós teremos a honra de interagir com uma pesquisadora que discute o que há de mais importante na sociedade contemporânea: o cansaço!
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Eu conheci a Vera Iaconelli, doutora pela USP e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, no programa “O Assunto”, da jornalista Natuza Nery, e me identifiquei total e instantaneamente com aquele personagem que ela traçou. A mãe esgotada, que chora à noite de solidão, de cansaço, desconectada da sua realidade, sentindo-se explorada, sem energia para os filhos, o trabalho, a casa, os cuidados com a sua saúde, a vida social. Alguém aí se sente assim ao ter filhos pequenos, marido, carreira e milhares de coisas práticas para resolver no dia a dia? Vera é autora do livro recém-lançado Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e Políticas da Reprodução, onde ela conta a sua experiência de anos com consultório onde as mulheres iam pedir socorro. O papel de cuidadora sempre atribuído à figura feminina, além de não ser reconhecido pela sociedade, não dispensa essa mulher da exigência de ser, também, bem-sucedida e produtiva fora de casa. O resultado é o que se chama de burnout materno, como explica Vera Iaconelli.
Vamos ouvi-la: “As mulheres estão adoecendo muito mais porque elas estão acumulando mais funções, mesmo quando elas conseguem dividir as funções com os homens, elas se sentem mais responsáveis do que os pais, então elas estão sobrecarregadas porque, com a entrada da dimensão virtual, além do trabalho, elas têm que estar sempre com uma aparência jovem, porque a internet marca este lugar de que as pessoas estão sempre felizes, se divertindo, fazendo coisas bacanas, o que não é verdade, porque a internet é toda editada, a gente só coloca ali os melhores momentos, o que também afeta as expectativas, e a internet também traz muitos discursos do que é ser uma boa mãe, do que você deveria fazer, do que você poderia oferecer para o seu filho, tem aí uma ideia de performance da maternidade, que sobrecarrega as mulheres. A partir da clínica e dos depoimentos das redes sociais, a gente vê que tem uma mentalidade que oprime as mulheres como mãe.”
A mulher é hoje vítima de um discurso, de um modelo e da incapacidade de também colocar limites numa vida moldada por um paternalismo que ignora as reais necessidades, tanto das mulheres, quanto dos próprios homens. Eu estou falando de uma ideologia, de uma sociedade capitalista que privilegia o trabalho e não a família e de uma mentalidade masculina de que os cuidados com terceiros não são uma tarefa humana, mas sim uma tarefa feminina. Olha como isso é delicado. Só que tem uma chave aqui que ninguém pensa ou fala. Quando a mulher adoece, e ela adoece severamente, quem vai cuidar desses filhos, da família, da casa, da comida e da rotina? Vera Iaconelli diz que um dos efeitos são a depressão e a ansiedade, que ela delineia no livro Manifesto Maternalista, em razão da responsabilidade que é atribuída à mulher, que tem um nome: maternalismo. Ela explica como esse processo se agrava nas redes sociais.
Vamos ouvi-la:
“As maternidades são muitas ao longo da história e da cultura, ser mãe em 1900 na Índia é diferente de ser mãe em 2023 no Brasil. Dependendo da época e da cultura, a forma de viver é muito distinta. A forma como se vive é atravessada por um discurso maternalista, que responsabiliza as mulheres, como se o Estado, as empresas, os pais, não tivessem a mesma responsabilidade que tem a mulher. A expectativa sobre a maternidade da mulher é assustadora é impossível de ser conciliada com a vida que ela leva hoje. E o maternalismo na internet se espalha muito mais, porque os discursos na internet tendem a alcançar a todos. O que eu tentei demonstrar no livro Antimaternalismo é que a maternidade entra em colapso por conta de uma ideologia e que se a gente quer proteger a maternidade, e o cuidado com as próximas gerações, a gente tem que rever essa situação, porque as mulheres estão chegando ao burnout, é uma mudança de mentalidade para que a gente possa chegar nas futuras gerações de uma forma coletiva, e não apenas como um encargo das mulheres.”
Considerando que temos 51% dos lares chefiados por mulheres, e a boa parte deles só mantidos por mulheres, e a gente vê também o cenário de violência doméstica, como ficam todas essas pessoas que dependem das mulheres, como as crianças? E há também as mulheres que vão cuidar das famílias mais abastadas e deixam seus filhos desassistidos. Como isso pode ser enfrentado? A internet pode ser uma ferramenta de libertação da mulher do século 21, ou ela perpetua essa opressão sobre papéis sociais cuja performance é impossível de ser atingida, levando o esgotamento físico, mental e emocional?
A internet propaga uma ideologia liberal de autoajuda e auto responsabilidade, mas se não regularmos as redes sociais para que não explorem as fragilidades femininas que tantas vezes já discutimos neste programa, vamos coletar poucas vitórias nesta geração e nas próximas gerações de mulheres que lutam por uma vida mais possível e menos idealizada na base da perfeição. Como a Vera destaca, a internet é só uma ferramenta, o problema é o que fazemos com ela, e qual a ideologia que se torna dominante por essa ânsia de lucro de empresas que monetizam o conteúdo, sem pensar no lado humano e nas individualidades de cada povo, raça ou também, e por que não?, nas questões de gênero.
Vamos ouvir a Dra. Vera Iaconelli:
“A internet tem esse poder catalizador, o que é ruim, isso é aumentado. E o que é bom, ela tem também o dom de transmitir, como esse programa. Só que ela faz isso numa velocidade e com uma etiqueta, e nós não sabemos usar isso direito, nós somos as primeiras vítimas. E no caso das mulheres, nos estudos com meninas, a gente vê que elas adoecem mais, têm problemas de depressão e ansiedade, em função da imagem, a mulher é muito capturada pela imagem e a internet trabalha com isso o tempo todo, é sempre uma questão de se ver e ser visto, e no caso das mães, os modelos de maternidade, as cobranças, elas se potencializaram com essa ferramenta.”
Então a gente pode atribuir à mulher a responsabilidade por dizer não para essas responsabilidades, como deixar de ter filhos, por exemplo? Isso não seria uma atitude egoísta da sociedade do consumo, que é vista como uma sociedade muito individualista?
Talvez o grande ensinamento do 8 de março, corroborando com as palavras de quem vê isso todos os dias, dentro de um consultório médico, é que o Estado tem o papel de promover a cultura do cuidado como uma cultura de todos, e não apenas um fardo feminino, uma espécie de condenação do destino só pelo fato de sermos mulheres. E a Vera é muito clara nisso: esse é o papel do Estado e nós estamos falando isso porque esta é uma rádio pública. Ou seja, mais creches, mais escolas, mais apoio para mães que precisam cuidar e amamentar, leis trabalhistas que levem em consideração esses papéis. Eu levei um puxão de orelha ao perguntar se as mulheres podem se ajudar a resolver o seu problema, quando na verdade a solução nunca será individual, nem fruto do esforço ou do mérito pessoal como a sociedade do consumo atual pensa. Mas a solução não vai estar no plano micro, da pessoa. A solução está em repensar estruturalmente a sociedade, com políticas públicas de longa duração e largo alcance, e orçamentos significativos, e eu convido os nossos ouvintes e espectadores para pensar de maneira sistêmica e cultural numa forma de discutir direitos das mulheres, direitos das mães e novas políticas para trabalhar o dever de cuidado como uma responsabilidade de todos.
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